quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Resenha: Nove Noites, de Bernardo Carvalho



Quando terminei de ler Nove noites, de Bernardo Carvalho, estava transtornada, suando e ansiosa. Acabo entrando nas histórias de maneira extremamente densa, dolorosa mesmo. Acho que a obra cumpre seu papel de existir quando sua extensão é atravessada desta forma. E para resenhar esse livro curto (são somente 176 páginas) precisei de tempo, de pensar, de matutar com as emoções e o raciocínio a respeito dos tópicos que eu poderia levantar sobre a obra.
No site da Companhia das Letras encontra-se a seguinte premissa:


No mínimo curioso, e o artifício da linguagem bem trabalhada, além da costura da trama, envolve mais que o esperado. As perguntas por responder em torno do suicídio, uma temática que tem sido alvo de alguns debates menos tímidos na sociedade atual, sustentam a narrativa caótica da obra.
Entre detalhes da vida de uma personagem inventada (o narrador, que tem muito de Bernardo), e documentos sobre a vida do antropólogo americano Buell Quain, o caminho que levou à ruína deste é refeito e somos tragados pelas impressões de um homem curioso, por vezes impaciente, além de trechos melancólicos, cartas existenciais que pontuam a narrativa. Confesso que acessei o 'Google' várias vezes em busca das imagens mencionadas, de personagens que eu desejava ver o rosto, mas nem sempre obtinha sucesso.
O ponto máximo está na não separação entre fato-ficção que Bernardo Carvalho faz questão de endossar em algumas entrevistas:


Dentre as obras de Bernardo a crítica ressalta Nove noites como a de linguagem mais direta, simples. Mesmo desta forma, o adjetivo labiríntico ainda faz jus ao texto do romance. O tom direto lembra uma conversa, e os trechos de cartas e bilhetes que flutuam entre os atos da narrativa desprogramam nossa lógica de leitura: Bernardo consegue conquistar a tensão, aguçar a curiosidade.
Outro ponto que se tem levantado sobre o livro é a forma taxada de "leviana" de descrever os índios. As experiências do narrador com a tribo que este visita são descritas de forma direta e com uma visão muito própria. Me incomoda que, em busca de diálogo sobre o livro, se encontre tantas análises antropológicas da 'invenção' de Bernardo. As críticas levantadas pela antropologia, ou os rumores que se instalaram dentro da discussão sobre a obra, acabam por ser distantes do propósito despropositado da invenção literária. O próprio Bernardo assume que não entende nada de antropologia, e aí é que está a beleza da coisa: ele desenha com verdade as impressões de um leigo em assuntos de antropologia dentro de uma tribo indígena, um jornalista que lá estava para tentar montar um quebra-cabeças sem solução.
Nove Noites contempla uma tendência a preencher lacunas na memória contemporânea. Como chegamos ao que somos hoje? E a busca reverbera em ideais sem resposta, em torno de inconsequências e do caos de existir. É sabido, entre especialistas e no cerne do senso comum, que não há justificativa plausível para o suicídio, mas a busca, pelo menos na obra de Bernardo, prende, provoca e tensiona os desejos de descoberta.
Peguei este livro, confesso, por algumas razões pessoais que envolviam a memória que construo para minha vida. Acredito que sempre fazemos isso ao escolher uma obra para nos acompanhar. Grata surpresa foi confrontar um mundo literário que perturbou meus pensamentos. Não sou crítica literária, tampouco quero construir uma 'fortuna crítica' sobre as leituras que faço. Como bem mencionei em outros textos, aqui é um espaço de diálogo tranquilo sobre as leituras que me sinto à vontade para falar, ou que me perturbam o suficiente para que eu saia da minha zona de conforto e venha desfiar conversas de palavreado comum sobre o que eu abri naquela narrativa.
Por fim fica a sensação que, ao contrário do que possa parecer, Nove noites é um livro sobre paternidade. E esta parte fica como fio de Ariadne para que, quem quer que se interesse pela resenha que aqui escrevo, procure ler Bernardo Carvalho.



Nove Noites, de Bernardo Carvalho. Companhia das Letras, 176 páginas.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Quando penso em escrever

Definitivamente não é fácil escrever. Você se pega avaliando e avaliando os escritos, apagando e escrevendo novamente aqueles trechos que parecem cada vez mais desconexos... Um sufoco, um peso, uma catástrofe após a outra. Alguns amigos me pedem para não exigir muito, deixar mais leve o processo da escrita. Mas amigos, reparem, não consigo levar assim nem o feitio de um café! Escrever me pede muito e não quero compartilhar com outros leitores um texto descompromissado, aleatório e sem o amor que cultivo pelas letras! Não posso! Seria um crime.
Tenho encontrado muitos trabalhos escritos com sangue, na fúria da juventude mas com nenhum compromisso. É o preço que pagamos pela liberdade em excesso: queremos falar, mas não sabemos o que queremos falar ou nem sabemos como falar aquilo que queremos. É estranho, não? 
Inicialmente propus este blog apenas para resenhas de leituras que faço, mas não adianta, acaba sendo um processo de catarse dos dramas ligados à literatura em minha vida. Tenho pensado muito a respeito das leituras que estão sendo feitas por aí: cada vez mais publicações surgem, deliciosas e fáceis de digerir, com enredos clássicos diluídos em partes por mil. Veja bem, não sou uma defensora da leitura "difícil", tampouco uma dessas pessoas que chama a literatura jovem da atualidade de 'literatura de entretenimento'. O que penso é que estamos nesta vida para evoluir em muitos aspectos, e na leitura não é diferente. Confesso que já li e ainda leio o que muitos críticos e afins chamam de 'lixo'. Não comecei o meu interesse pela leitura já de cara com Machado de Assis, francamente eu não o teria entendido aos 12 anos, dada a complexidade das ironias e facetas críticas imbricadas no texto do bruxo. Percebe? Eu só quero pegar pela mão aquele leitor curioso: vem aqui, vem ler comigo uma coisa diferente, fora da tua roda, estranha e que vai te fazer reler alguns trechos com medo de atravessar aquele pântano sem perceber as belezas que ali brotam a todo instante! Só.
Até lá vou ficar tentando escrever alguma coisa também. É que a Literatura enche a gente de dúvidas, e quando achamos de querer escrever é em busca de responder alguma coisa. É uma tentativa. Ten ta ti va.
Até conseguir escrever alguma coisa vou voltar a resenhar e convidar os desinteressados e perdidos a lerem comigo.
A propósito, me indique um livro!

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Resenha da Semana: O pintassilgo, de Donna Tartt




Uma essência triste. Assim posso falar da experiência/impressão que tive com a aclamada obra de Donna Tartt: O Pintassilgo. A autora em questão tem um ar de mistério e beleza, convenhamos que basta uma foto da mulher para que nos indaguemos quem é, onde vive? Etc. Donna é norte-americana do Mississipi, ganhou o Pulitzer com a obra que me desafiei a resenhar aqui (um imenso desafio, uma vez que ela foi resenhada milhares de vezes pelos grandes, médios e pequenos blogs, mas aqui é uma impressão apenas, calma amigos...). Todas as suas obras foram traduzidas pela Companhia das Letras, então temos acesso ao trabalho da escritora via uma editora que traduz bem e faz capas relativamente belas (sim, é um detalhe que me incomoda profundamente: a capa!). Aceitemos que ela desperta no meio crítico um incômodo: se você for pesquisar encontrará resenhas que amam e outras que odeiam a moça, umas que atribuem o sucesso de suas obras ao seu visual, outras que esquecem a face da mulher e se concentram nas palavras. Enfim, a crítica tem muitos caminhos, vertentes tortuosas que nada mais são que uma tradução do que há de mais humano: o desejo de desvendar a arte, o incômodo. Não vou adentrar neste melindre literário, considero uma obra literária um universo de possibilidades, algo complexo o suficiente para me ater por inteiro. Claro que quis saber quem era a autora, evidente que aquela fotinha na orelha do livro me chamou atenção, mas não o suficiente para me soltar da narrativa. E a ela nos dediquemos.

A intrigante Donna Tartt.

É um desafio aos desavisados. Afasta os incautos apenas pelo volume: 720 páginas em papel pólen soft (OMG! Amo papel pólen!), uma capa misteriosa e um título convidativo. Confesso que iniciei a leitura cheia de medo, pois desconfio dos vencedores recentes do Pulitzer, mas me senti atraída por dois simples fatores: uma capa bonita e o fato de ser uma autora, uma mulher. (Precisamos ler mais mulheres! Sou a favor disso... Depois dedico um post sobre o assunto, pois é algo que ronda meus pensamentos inconstantes.) O enredo é direto e de certa forma simples: a história de um garoto órfão e a crueldade do destino. Mas os labirintos da narrativa e o fato dos acontecimentos serem narrados pelo próprio garoto são elementos que enriquecem a obra. Theodore foi abandonado pelo pai e perde a mãe num atentado terrorista. O único elo entre ele e a memória de sua vida ‘feliz’ com a mãe é uma pintura pequena de um pintassilgo, que o direciona a uma vida cada vez mais conturbada.
Narrar uma história de obsessão por uma obra de arte, que na verdade é uma tentativa desesperada de se agarrar ao passado considerado feliz, é no mínimo deprimente. Theo é o retrato do desespero calado, da dor, e as referências artísticas desnudam o sentido destes sentimentos a cada capítulo da obra. Um mesmo quadro tem perspectivas infinitas. E esta é apenas uma delas. As personagens que tocam o protagonista nunca se mostram por inteiro, considero um sucesso por parte da autora a sua forma de mostrar o pensamento de alguém, um jovem a contar sua própria história: a memória e suas fantasias, seus monstros e desejos. Em alguns momentos pude sentir o gosto amargo da vida de Theo, em outros fiquei obcecada pela obra O pintassilgo, do pintor Carel Fabritius, de 1654. Confesso que a raridade de uma obra agradar tanto ao público quanto à crítica em geral me causou um certo interesse pelo trabalho, e não me decepcionei. Sim, Donna exagera em alguns momentos em seu estilo carregado, excesso de adjetivos, mas em seguida me questionei se este não seria o tom narrativo da personagem: o jovem Theo, desesperado por se agarrar ao passado, tentando a todo momento justificar sua infeliz passagem pela vida. 

O pintassilgo, de Carel Fabritius. 33 x 22cm. 1654.

O pintassilgo é um livro triste. Dito isto mais uma vez, percebo que ele foi competente na sua premissa. Talvez desagrade à crítica literária especializada a pitada de suspense policial que Donna Tartt coloca na obra, e talvez seja esta a fórmula utilizada pela autora para transgredir alguns limites e derrubar os muros entre o que é considerado ‘biscoito fino’ e a leitura para a ‘massa’. Não gosto de desfiar o enredo por inteiro, meu foco nestas resenhas sempre será nas impressões a serem compartilhadas com os leitores. Em suma, ler esta obra me trouxe uma teia complexa de sentidos, visitei os problemas de outrem por vias que nunca considerei como possibilidade. Acredito que vale a leitura, de peito aberto mesmo. Lá dentro encontramos uma visita à arte e aulas de estética absolutamente simples, como deveriam ser, afinal todos nos deparamos com a arte com o mesmo propósito e a educação para a apreciação é uma realidade infelizmente distante. Dito isto, espero ter contribuído com meu simples relato de leitura, pois só chamo de resenha por ter um pouco da obra em mim, e por convidar os leitores do blog a partilharem comigo suas experiências de leitura.
Finalizo com um trecho, pois acredito na experiência como melhor convite:

Mas às vezes, inesperadamente, a dor me atingia em ondas que me deixavam sem ar; e quando as ondas recuavam, eu me via olhando para os destroços repulsivos de um naufrágio, iluminados por uma luz tão lúcida, tão deprimente e tão vazia que eu mal conseguia lembrar que o mundo algum dia chegara a ser algo que não morte. (pág. 88)


O pintassilgo, de Donna Tartt. Companhia das Letras, 721 páginas.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

CORTÁZAR, Julio. In: O Jogo da Amarelinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.


Mais uma leva de citações. Desta vez foi Cortázar o escolhido, dentre os nomes que leio no momento. Estou amarrada na leitura de Virgínia Woolf (Noite e Dia) e Rudyard Kipling (A casa dos desejos e outros contos escolhidos por Jorge Luis Borges), portanto precisava retornar ao febril Cortázar e desamarrar um pouco a atualização deste amado espaço.
Me apaixonei pela escrita fluida de Julio. Há tempos tenho tido contato com este trabalho, mas em "O Jogo da Amarelinha" a situação se tornou irreversível.

Fica o recorte e a dica de leitura.

Irei sentindo cada vez menos e recordando cada vez mais, mas o que é a recordação, afinal, senão o idioma dos sentimentos, um dicionário de rostos e dias e perfumes que voltam como os verbos e os adjetivos no discurso, adiantando-se disfarçados, à coisa em si, ao presente puro, entristecendo-nos ou lecionando-nos vicariamente até que o próprio ser se torna vicário, o rosto que olha para trás abre muito os olhos, o verdadeiro rosto se mancha pouco a pouco como nas velhas fotografias e Jano, de repente, é igual a qualquer um de nós. (Capítulo 21 - p.116)

sexta-feira, 6 de março de 2015

Máquinas de escrever


Quando criança eu desejava uma máquina de escrever. Se hoje os computadores encontram correspondentes entre os brinquedos nas prateleiras das lojas, naquela época as máquinas de escrever eram produtos em potencial para crianças: coloridas, revestidas de desenhos de personagens famosos, cheias de brilhos e texturas eram disponibilizadas nas prateleiras por preços não tão bonitos assim.
Minha mãe não queria comprar aquilo. Na verdade sei pouco sobre o que realmente motivava mamãe a não querer aquele objeto em casa, mas posso deduzir de forma simples que ela não queria na calma do lar um objeto caro, barulhento e que reinava em seu trabalho.
Me pergunto se eu teria vingado nas artes da escrita se tivesse em mãos, aos sete anos de idade, uma máquina de escrever com todo o seu charme e barulho. Uma vez que ler sempre fora algo presente, escrever se tornaria (se tornou?) uma consequência, como o é em meus muitos cadernos.
Não sei pensar em nada diferente disto. Posso traçar uma linha firme, do meu letramento até os dias de hoje, sobre os sabores e dissabores com a leitura. Sinto que passei com saúde por todas as fases da leitura: a infância em que testei limites sensoriais; a juventude desafiadora e curiosa, tateando entre o ruim e o bom texto, desejando encontrar algo que substituísse minha voz; a vida adulta que degusta o pouco tempo que tem para a leitura, admira grandes narrativas e poemas, tem vergonha (por vezes) dos bobos nomes que leu na adolescência, mas ainda assim agradece cada voz que ajudou na jornada até os dias de hoje.
Não me classifico como uma leitora compulsiva. Não leio qualquer livro que me cai no colo. Mas não menosprezo os que não nutro um interesse, apenas não tenho desejo pela leitura daquele texto. Ler me acalma, me delimita um pensamento no turbilhão diário. Me torna. Em quê, ainda não arrisco responder.
Já escrever foi algo distinto, surgiu da necessidade, no preenchimento de algo que não nomeei ainda, mas pode ser alguma coisa da ordem do espírito. Faço acordos comigo na hora de construir minha narrativa. E nenhuma qualidade escrita por mim neste texto pode descrever de forma competente como é esta narrativa. 
Só para constar, ganhei uma máquina de escrever aos 27 anos. Foi um dia lindo.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

WOOD, James. In: Como funciona a ficção. São Paulo: Cosacnaify, 2011


Lendo James Wood, eis que me encontro com citações que me agraciaram enquanto leitora e pesquisadora da literatura. Escolhi abrir o blog para compartilhar estes trechos. De antemão peço que não me julguem mal: colocarei citações sempre no intuito de convidar, nunca de 'resumir'. (serão poucas as citações do universo de 230 páginas do livro)

"A casa da ficção tem muitas janelas, mas só duas ou três portas"


"[...] o romance nos ensina a ler o narrador"


"Se a história de Macbeth é a de uma privacidade trazida a público, a história de Raskólnikov é a de uma privacidade sob escrutínio." (Essa em particular me adoeceu! Uau!)


"O romance é o grande virtuose da excepcionalidade: sempre se esquiva às regras que lhe são ditadas. E o personagem de romance é o próprio Houdini dessa excepcionalidade."

sábado, 3 de janeiro de 2015

Resenha da Semana: Livro Sexto, de Sophia de Mello Breyner Andresen




O livro que agora me proponho a resenhar, infelizmente, não foi publicado no Brasil. O encontrei em Portugal, porventura de ter recebido o pedido de um amigo para que levasse de presente qualquer obra de Sophia de Mello Breyner Andresen, acabei comprando uma dezena de livros dela, pelo baixo custo e pela imensa beleza das edições.
Me apaixonei pela poesia de Sophia imediatamente ao ser confrontada por suas palavras sussurradas em Lisboa. Uma poesia sóbria e que leva à imagens bem construídas em um ensejo musical. Cabralina. Forte. 
A autora nasceu em Porto, Portugal em 1919 e faleceu em Lisboa no ano de 2004. Publicou obras poéticas, teatro e traduções de Dante a Shakespeare. O “Livro Sexto” foi a sétima obra da autora, e acabou sendo agraciada com o “Grande Prémio de Poesia”. Dentre as palavras proferidas por Sophia na ocasião do recebimento desta premiação, destaco:

Retrato da autora por Arpad Szenes, 1958

‘Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda de uma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar, e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor.’ (pág. 73)

Lançando perguntas ao mar podemos ter um tempo de meditação e crescimento com estas mesmas dúvidas que retornam nas ondas. A obra de Sophia foi dividida em três partes, e todas elas tem em seu cerne o cheiro misterioso e salgado do mar português. Na primeira parte, intitulada ‘As coisas’, encontra-se poesia, lugares, evocações e história. Melodias e prosa poética de forma suave e bem trabalhada. O rigor estabelecido pela autora demonstra a presença do Clássico em seu discurso:

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido 
[...] (MUSA, pág. 16)

O maior chamado que um poeta pode fazer é perpetuado na voz de Sophia, na serenidade da evocação da Musa. No entanto dor e beleza se emparelham, são frutos de uma mesma nota dessa harmonia:

Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta
(MUSA, pág. 17)

Numa leitura personalíssima eu arriscaria me aproximar de Cecília Meireles ao ler os versos de Sophia. A competência estética em temáticas dilacerantes pode ser equiparada em ambas. Em ‘A estrela’, segunda parte da obra, o inefável se torna vigoroso. O poema que dá seu título a esta parte do livro, guia a leitura dos que seguem. (Em alguns momentos desta resenha preciso me conter para não desfiar os versos por inteiro, tamanha a beleza e o convite). O que chamo de cabralino é a herança do ofício de João Cabral de Melo Neto (posteriormente descobri que o autor brasileiro era correspondente da autora), deleite que ecoa nestes versos:

               NO POEMA
Transferir o quadro o muro a brisa
A flor o copo o brilho da madeira
E a fria e virgem liquidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso

Preservar a decadência morte e ruína
O instante real de aparição e de surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa

(pág. 32)

Pedra lapidada ao longo de um trabalho matemático, bem calculado, beleza em um cerne clássico, atemporal. O desfile de possibilidades bem colocadas no papel, os ecos de vozes que guiaram a elaboração de um trabalho tão delicado/dedicado. 
Na terceira parte, ‘As grades’, Sophia traz o retrato do pranto, da pátria num perfil real cantado em solidez:

Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável
[...] 
(PÁTRIA, pág. 57)

Doloridas páginas se prolongam até o encerramento desta obra num posfácio lúcido e grandioso, fruto das palavras proferidas pela própria autora em razão da premiação recebida pelo ‘Livro sexto’. Vou encerrar esta resenha me sentindo incompetente na árdua tarefa de desenhar o que foi a leitura destes poemas, e por fim deixo a mais conhecida e marcante citação desta obra:

                    INSCRIÇÃO
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar

(pág. 43)


Livro Sexto, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Caminho Editorial, 80 páginas.